domingo, maio 14, 2006

Apuros de um torcedor

Luiz Antonio era fanático por futebol e isso não se limitava apenas aos exageros que cometia regularmente durante os jogos do seu time do coração, o Flamengo, comprando fogos de artifício para comemorar possíveis vitórias, mas se estendia pelo amor à arte, assistindo a partidas de outros times, inclusive do campeonato europeu, no fascínio de presenciar e aplaudir jogadas que considerasse espetaculares.

Desde que ficara decidido que a Copa do Mundo de 2006 seria na Alemanha, todo seu interesse futuro se convertera ao planejamento de uma viagem ao Velho Mundo, para acompanhar de perto a Seleção Brasileira em busca do hexacampeonato. Com olho no evento, juntou dinheiro, preparou passaporte, cuidou do guarda-roupa que levaria, tudo em um procedimento metódico e constante, para que nenhum obstáculo surgisse à última hora.

Para melhorar sua perspectiva de uma boa estadia na Alemanha, ainda tinha uma tia casada, há pouco mais de cinco anos, com um industrial alemão, que residia em Leipzig, uma das cidades programada para sede do evento. Esse fato lhe garantia o alojamento grátis, a apenas uma hora e meia de Berlim de carro ou trem, lugar onde, por certo, o Brasil haveria de jogar a final do campeonato. Se Deus quisesse...

Quando faltava uma semana para o início dos jogos, Luiz Antônio embarcou. Precisava chegar com alguma antecedência, para se ambientar, dizia ele.

Sua partida foi festiva, com a presença de muitos amigos, com uma certa ponta de inveja por não terem tido a perseverança que Luiz Antônio havia demonstrado, para concretizar seus sonhos. E o desembarque em Leipzig mais alegre ainda, com a tia cinqüentona eufórica, carente de poder se comunicar em seu próprio idioma e, ainda mais, com um sobrinho tão querido que vinha para lhe fazer companhia nos angustiantes momentos de fervorosa torcida que se aproximavam.

Almoçou com os tios, mas não quis privá-los de suas atividades rotineiras e enquanto eles saíam para o trabalho, quis dar uma volta de reconhecimento pelo centro. Não aceitou o carro que lhe foi oferecido pois preferia caminhar, num contato mais direto com a cidade. E, seguindo as indicações da tia, foi caminhando pelo centro histórico, apreciando obras renascentistas e barrocas, ao lado de construções recém terminadas para abrigar os esperados turistas.

Terminou chegando em uma praça onde havia uma estátua de Goethe quando jovem, num marco eterno de que, em sua universidade, uma das mais antigas da Europa, o célebre autor recebeu as bases do seu conhecimento.

Sua tia lhe contara que, em frente à estátua, havia uma passagem cheia de lojas, cafés e restaurantes que levava ao bar Mephisto, ao lado do qual ele encontraria uma escultura de bronze representando Fausto, o homem que vendeu sua alma, segundo o romance de Goethe. Os supersticiosos desenvolveram o hábito de passar a mão pelo pé esquerdo da simbólica figura, em busca de sorte. E, diante do brilho do tal sapato de bronze, em total contraste com todo o resto obscurecido da imagem, podia se concluir que são muitos os que crêem na existência de estranhos mistérios permeando a rotineira realidade.

Como todo bom torcedor brasileiro, cheio de mumunha, Luiz Antônio, nem bem tomou conhecimento da lenda, passou a agir em função de um único objetivo: um colóquio com a estátua de Fausto. Tinha certeza de que o escrete brasileiro era o melhor do mundo. Não tinha qualquer dúvida a respeito disso. Mas sabia também que nunca seria demais uma ajudazinha do além... Assim, atravessou à praça em direção ao café Mephisto e, quase compungido, esfregou o pé esquerdo da figura de Fausto, pedindo o hexacampeonato para o Brasil.

Depois disso, bem mais sossegado, já que o desfecho da Copa estava entregue a estâncias superiores, continuou andando, parando aqui e ali, até se sentir bastante cansado. Realmente abusara um pouco. Havia os fusos horários que já minavam demais as resistências e ele ainda desafiara as suas forças.

Resolveu voltar de ônibus. Felizmente, tudo estava muito bem sinalizado, em alemão, inglês e espanhol, coisas mesmo de Primeiro Mundo, o que lhe permitia locomover-se com a mais absoluta segurança.

Sentou em uma das poltronas e, só então foi vendo o quanto andara. Na ânsia de atingir o bar Mephisto, havia exagerando na exploração de sua resistência...

Ao chegar em casa, já estava anoitecendo, mas os tios ainda não tinham chegado, felizmente a tia previdente havia lhe dado uma chave, e ele pode entrar sem maiores problemas.

Maiores problemas é maneira de dizer pois, no centro da sala estava um homem magro, de terno preto e fisionomia circunspecta que o olhou fixamente.

Desconhecendo os hábitos do lugar, achou que fosse algum parente do Helmut que também estava alojado na residência dos tios e cumprimentou, solícito.

- Boa tarde! Não sei se o senhor fala português, mas eu sou Luiz Antônio, o sobrinho da Zuleika que chegou hoje do Brasil, para ver a Copa do Mundo. – Disse o rapaz, a título de explicar a sua presença meio invasora no local.

- Eu sei muito bem quem você é! – Falou o homem em português fluente. – Estou aqui para firmar as condições do pacto.

- Pacto?... Que pacto?...

- Sua alma por um desejo.

- Que tolice é essa?... Quem é o senhor?...

- Não se faça de inocente! Eu sou Mephisto, a quem você foi, ainda há pouco, pedir empenho para a realização do seu desejo. Não quer que eu patrocine a vitória do Brasil na Copa?... Patrocino. Mas é bom que saiba que isso tem um preço, meu amigo, e você terá que pagar! Ou você pensou que eu fosse trabalhar de graça?...

Luiz Antônio tremeu. Ali, diante dele, o próprio diabo ao vivo e sem cores... Em preto e branco mesmo... Um suor frio correu pelo seu corpo. Seus pés ficaram como que grudados no chão. Quis falar alguma coisa, mas a voz embolou na garganta como se fosse uma rolha, sufocando-o.

Foi quando, miraculosamente, um som, bem próximo ao seu ouvido tirou-o do torpor.

- Herr! Akkord! Wir sind im letzten punkt dês busses.

Abriu os olhos, espantado.

Ao seu lado, um jovem com uniforme de cobrador da empresa de ônibus, percebendo sua expressão de total atordoamento diante da informação, repetiu em espanhol:

- ¡Señor! ¡Despierta! Estamos en el punto final del autobús.


Yedda Pereira dos Santos