quinta-feira, junho 02, 2005

Adormecer no Douro

Eram 20 horas e cinquenta minutos quando o destino começou a ganhar asas. Parecia mesmo que queria dar-me um voto de perdão ou, quem sabe, de consolação. Voaram pensamentos, dores, amarguras. Em meu leito, predominava a escuridão.
Foram vários meses de desleixo, vazio, amargura e saudades. Não sentia vontade de lutar pela minha própria vida, mas encontrava razões para deixar fluir, de dentro do peito e da mente, um pedido: O último beijo.
Abril de 2004
Encontros, desencontros, amarguras, choro, desespero, amor, felicidade, razão, solidão, beijos, luta e abraços. Vivia o mito da felicidade frente ao herói desta conspiração.
Num dia ensolarado, ouvi um último ruído. O meu coração não aguentou. Rezar já não resultava. Estava definido o meu fim. Mas eis que surge, em meio ao estribilho de sempre, a renovada esperança.
Aquela porta do quarto do hospital escondia o que lá dentro se passava. Eram instantes. De repente ouvi passos lá fora. O barulho parecia cada vez maior, até cessar. A porta abriu-se. Não consegui olhar o seu rosto. Meus olhos e a minha alma recusavam-se a viver. Esperei por um momento o bater da porta. Não mais a escutei. Aos minutos seguintes, sucedeu-se o inexplicável. O seu calor tomara conta de mim. Conseguia saber e ver ao longe o que ela fazia. Olhava o meu corpo, o meu resto de vida. Deitado e calado, eu chamava por ela. A única e talvez a última oportunidade de conquistá-la ainda restava em nós. Ouvia, mas não falava. Estava travado pela seiva da vida numa cama, a viver os últimos momentos da minha infortuna.
Passaram-se seis minutos.
Estatura média, cabelos negros, olhar castanho, noviço e delicado. Mente ainda sem pecado. Corpo aos olhos do céu construído. Semblante conhecido com ar de tortura a bater no vento a sua inspiração. Amorosa no ventre, solitária na noite, protegida pelas mãos de outrem. A porta fechou-se. Pensei ter ido embora. Mas os passos se aproximaram de mim.
- Como estás? Disse a voz que rapidamente reconheci.
Não falara há meses, mas sabia exactamente o que dizer naquele momento.
- Estou com saudades. Respondi com a alma ofegante.
- Não respondes por que não tens vontade. Sei que queres tocar o meu corpo mais uma vez e também eu desejo-te. Quero acabar com este mistério que fazes e começar tudo novamente. Esbracejava ela.
- Sabes, há muito tempo eu queria deitar ao teu lado e contar-te uma história. Naquele dia que te vi chegar ao pé de mim, meu coração dizia que querias sempre mais. Não davas um passo atrás. Chagava-te perto e teus olhos me diziam sempre o mesmo. Como querias que eu reagisse? Sabia lá eu que querias menos do muito que eu te podia dar?
Palavras e pensamentos. Eu dialogava e ela insistia em encara-me com os seus olhos de cristal. Por um instante disse ela:
- Por que não tentaste mais uma vez? Era fácil conquistar-me!
- Como ousas dizer que eu não tentei. Depois de olhar-te, fingi conhecer-te por mais tempo. Fingi ter-te amado mais vezes. Vê se recordas aquela tarde em tua casa. Fiz do mel a semente do meu desejo. Pensei meia vez antes de te querer beijar e, mesmo antes de tudo isso, vi-te em meus braços a deitar-te e a pedir-me para ficar contigo. Deitei onde querias e senti-me nos céus. Tomaste conta do vazio que sentia naquele altura. Mas ao contrário de mim, não sentias nada.
- Nada. Nunca dizes nada! Quem pensas que eu sou? Venho cá, encontro-te assim e não deixas a tua vontade de viver ressaltar sobre mim? Porque? Desististe? Reage. Agarra-me e continua o que começámos. Anda lá! Faz-te homem ou não és mais capaz de me amar?
- Como podes mais uma vez duvidar do meu sentimento. Então, não lembras? Não inventei nada. Vivemos tudo juntos. Depois do primeiro pedido e dos beijos tímidos que demos, pensei que serias outra mulher. Só me querias quando a vontade estava ao teu lado. E, consolado, esperava eu o teu prazer pedir meu nome. Isso é trair? Sempre fui homem para ti, mesmo sem te ver por longos anos. Sempre soube esperar andares pelas tuas próprias pernas. Mas bem admito que esperei até onde pude, não mais consegui segurar este sentimento. Nasceu assim e o baptizei com o teu nome.
- Não me deixes assim. Diga algo de jeito.
- É impossível viver sem te ter. Será que um dia eu vou poder te abraçar novamente. Tudo mudou. És uma ilusão? Sabes aquelas vezes que andávamos juntos pelas margens do teu rio Douro e nos perdíamos num lugar pequeno, onde a água dava cor aos nossos sonhos e desejos? Então, tu também sonhaste e não foi pouco. Teu sonho passou à realidade e eu, de pé em Deus, passei do sonho ao que hoje é real. Muitas vezes deste-me a alegria de beijar-te. E quando decidiste encostar os teus lábios nos meus? E quando disseste: Gosto de ti? Tens a certeza de que aquilo não valeu nada?
- Pára! Volta para mim. Não faças isso. Por que ages desta maneira?
- Bem, acho difícil esquecer o que passámos. Infeliz de mim que dei valor e prendi-me a este sentimento. Depois daquela volta, das folhas da primavera que vi, por que pegas-te a mão de outro? Não te lembras? Tudo fazíamos escondidos, mas aos olhos dos outros. Se alguém viu, não reparou. Da última vez tentaste-me quando estávamos embriagados de vontade. Deitas-te na cama. Peguei as tuas mãos. Alisei o teu corpo. Beijei os teus lábios. Demos lugar a paixão. Levantaste-te e foste embora. Por lá fiquei. Ainda em pé, pedi-te o final. E agora?
- Desisto eu. Mexe-te. Deixa-me te amar novamente.
- Não peças o impossível. Quantas vezes chorei a pensar no teu abraço? Quantas lágrimas mancharam o teu verso escrito por mim? Por quanto tempo fiquei deitado na cama a lembrar e a imaginar o teu rosto, confundindo lágrimas com saudades? Quero beijar-te novamente.
- Já chega! Passo-me com isto. Sabes bem que foi muito difícil deixar o nada para que pudesse cá vir. Pensei muito e, em pouco tempo, estava cá. Agora não falas. Sei que podes. Há seis minutos que não abres a boca. Tenta, lindo. Levanta. Dê-nos outra chance. Passou-se o tempo. Pensava eu que ela estivesse louca, mas tinha novamente a razão. Doze tempos andantes são suficientes para amar o Verão e deixar o Outono dar cabo das folhas que viram, em bom tempo, o nascer desta paixão.
Por um longo período falei-lhe de boca fechada. Dormia involuntariamente e sonhava despertá-la em meu sonho.
Eram 20 horas e cinquenta e seis minutos quando o destino começou a ganhar asas. Parecia mesmo que queria dar-me um voto de perdão ou, quem sabe, de consolação. Voaram pensamentos, dores, amarguras. Em meu leito, predominava a escuridão. Foram vários meses de desleixo, vazio, amargura e saudades. Não sentia vontade de lutar pela minha própria vida, mas encontrava razões para deixar fluir, de dentro do peito e da mente, um pedido: O último beijo.
- Não aguento mais. Vou fazer o que tenho e o que quero fazer. Perdão. Beijo-te e deixo-te. Mas levo comigo esta tua lembrança, com a moldura do nosso passado, decidiu ela.
A distância entre nós diminuiu. Seus cabelos tocaram o meu peito. Seus lábios, os meus. Até se decidirem tocar por inteiro. Boca a Boca. Ela curvou-se e beijou-me. Por um momento pude responder… Passou-se o tempo… Que beijo de súplica! Línguas em guerra. Mentes em transfusão. Beijava-a com força e vitalidade. Não há sinais que resistam… Por lá fiquei… Gélido. Mirei o seu rosto e ela olhava-me. Olhei para o lado, lá estava ela. Chorava intensamente. O quarto não mais estava vazio connosco. Mentes e gentes olhavam e choravam.
Olhei mais ao lado, para onde todos prendiam a atenção e vi o meu corpo, ainda em sobressalto, a lutar pela vida. Cobriram-me com o seu pano branco.
Foi o fim. Seus lábios largaram os meus. Boca a Boca, somente um lado o poderia sentir. O tecto azul lembrava o céu de uma terra que um dia ostentou um sol a brilhar sobre nós. Lembrei-me muito rápido de vários momentos da minha vida. Do começo, dos tempos de amor, da miserável e inesperada partida e também do fim. Lembrei da minha terra quente que dá voz ao passado, hoje, menos presente. Até que um túnel me chamou. Voei. Cheguei onde estou.
Dunas, montes, socalcos, correntes de história, recordações... Não mais voltarei. Ela decidiu amar-me no momento da despedida. Não tive tempo de viver mais um conto.
Aproveitei o que de melhor os segundos me puderam dar e deixei levar-me pelas minhas últimas forças, até que a minha mão não mais a pudesse sentir e parasse no sereno toque dos lençóis de outrora. Sua pele tocou os meus cabelos, nada pude fazer, a não ser agarrar-me a sorte, que traiu-me depois da morte.
Entregámo-nos a um desejo que só eu soube valorizar. À contrapartida, as lágrimas me acompanharam, um dia paradas, outro dia, a rolar em meu rosto. Pensava eu que iria fazer diferença amá-la.
Um rio deu início a tudo que chamo lembrança. Um pedido. Uma negação. E uma entrega, que poderia ter sido eterna. Talvez os santos não estivessem de acordo com o papel dos nossos corações. Quem sabe nem mesmo sentia o que penso ter vivido. Sentia triste as minhas pernas por não me poderem levantar. O meu vizinho de emoções me acompanhava. A cada passo que eu dava, era seguido e olhado.
À primeira vista pareceu-me ilusão. Mas aconteceu. Deitados, de forma modesta, beijámo-nos. Olhos e olhos. A cada mirada um beijo. Uma entrega em um só coração. Recordação, só da água a tocar as pedras. Saudades, só dos seus lábios a tocarem os meus. Os seus lábios sabiam a novos, mas ao que sei, são restaurados. Muito me disseram que da vida nada levamos, somente a saudade. Por mais que eu tente apagar as lembranças, não será possível esquecer o seu abraço, o seu cheiro, as curvas do seu corpo e, principalmente, o seu beijo. Do que vale acreditar em sonhos se somos obrigados a acordar em cada vão momento? Minhas lágrimas já não secam, já não caem. Sei, e dessa certeza vou viver, que cada momento, cada inspiração tem um preço. No meu caso, foi a vida. Agora, de onde estou, vejo-a todos os dias. Fico na penumbra dos meus sentimentos e escondo-me cada vez que alguém dela se aproxima. Aquele sorriso é difícil de esquecer. Tenho a certeza de que ainda pensa em mim. Beija-me Cinderela duriense, dá luz ao nosso conto de fadas e deixa-me sorrir ao teu lado, pois sem ti não há paraíso feliz, não há perdão sem consolo, nem mesmo há amor em meu peito. Neste Património onde pisei, bebi do seu “veneno” e experimentei da sua vocação: Fazer sofrer a quem lhe amou.
Ígor Lopes